4 de out de 2024 às 16:26
A oposição entre normas morais absolutas e experiência pessoal no discernimento em matéria de pecado ressurgiu com clareza no Sínodo da Sinodalidade. Na quinta-feira (3), os grupos de estudo de questões polêmicas estabelecido pelo papa Francisco no ano passado apresentaram seus relatórios.
“Não é uma questão de proclamar e aplicar princípios doutrinais abstratos, mas de habitar de modo vital a experiência de fé em sua relevância pessoal e social”, disse o relatório apresentado pelo grupo de sete teólogos responsáveis por aprofundar as questões sobre moral sexual e do início e fim da vida. “Só uma tensão vital, frutífera, e recíproca entre doutrina e prática encarna a Tradição viva e é capaz de se contrapor à tentação de confiar na esclerose estéril de pronunciamentos verbais”.
No ano passado, a declaração Fiducia supplicans, que autorizou bênçãos a uniões homossexuais, foi aclamada por bispos da França, Bélgica e Alemanha, por exemplo, e recusada pelos bispos do continente africano, por exemplo. O prefeito do Dicastério da Doutrina da Fé, cardeal Victor Manuel Fernández, disse em entrevista à agência de notícias espanhola EFE que o documento assinado por ele não tinha causado divisão na Igreja. “A divisão já existia e só se tornou transparente”.
Essa divisão, registrada agora no texto do grupo de estudos apresentado no Sínodo da Sinodalidade, é, na verdade, antiga.
Ela começou antes do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa são João XXIII em 1959, três meses depois de iniciado seu pontificado, marcou o concílio realizado entre 1963 e 1965, e fomentou uma disputa ainda em curso em torno de qual deve ser a correta interpretação e aplicação das decisões do concílio.
O Vaticano II foi antecedido por três anos de preparação. No primeiro ano desse período, os bispos do mundo inteiro enviaram mais de 2 mil sugestões sobre os temas que deveriam ser debatidos no concílio. Esse material foi enviado para dez comissões encarregadas de redigir esquemas a serem usados pelos bispos durante o concílio.
Meses antes da primeira sessão do concílio, sete esquemas estavam prontos, aprovados pelo papa, e enviados aos bispos do mundo todo. Os esquemas foram recebidos com severas críticas por parte de muitos bispos “provenientes da França e das regiões sob sua influência (as ex-colônias francesas e o Canadá francófono), da Alemanha e da Holanda, mas também em escritos de bispos dos países em desenvolvimento e das terras de missão”, escreve Klaus Wittstadt no livro Storia del Concilio Vaticano II, dirigido por Giuseppe Alberigo, uma espécie de versão oficial da história do concílio de um ponto de vista progressista.
O arcebispo de Lyon, França, cardeal Pierre Gerlier, disse à época que “os textos, embora de alto nível filosófico e teológico, não atacam a questão da tarefa pastoral da Igreja no mundo de hoje”.
“Não se esperava [dos esquemas] nem uma lista de erros dos quais a fé se deva proteger, nem uma exposição escolástica das verdades da fé, mas antes uma comunicação clara e viva da verdade de Deus revelada ao homem”, escreveu ainda em 1960 Alfred Ancel, bispo-auxiliar de Lyon. “A Igreja deve reunir as pessoas lá onde elas estão, de modo que, em nome de Deus, possa se transformar em amiga delas. A Igreja deve transformar o mundo de hoje.”
Segundo Wittstadt, “quase todas as respostas francesas criticam os esquemas porque tratam só da perspectiva ad intra (para dentro), enquanto as questões ad extra (para fora) não encontram nenhuma consideração”.
Não é difícil ver a continuidade entre os termos usados nessas críticas com o que veio a se tornar o programa do papa Francisco expresso em conceitos repetidamente usados por ele como o de “Igreja em saída”, a ênfase que ele dá à ideia de “proximidade” como tarefa primordial da Igreja, e a preocupação com questões contemporâneas como as mudanças climáticas.
Ainda antes da primeira sessão do Vaticano II, cardeais franceses, alemães, belgas e holandeses se uniram para propor substitutos para os esquemas preparados pela Cúria Romana. Os franceses encomendaram a tarefa aos teólogos Yves Congar, francês, e Hans Küng, suíço. Os holandeses pediram a ajuda de Edward Schillebeckx. Os alemães encarregaram o jesuíta Karl Rahner, um dos mais influentes teólogos do Vaticano II e da segunda metade do século XX.
O esquema sobre moral preparado para o concílio e rejeitado expunha a doutrina tradicional católica e criticava erros em que teólogos morais dos anos imediatamente anteriores ao concílio haviam incorrido, como “o subjetivismo e o relativismo ético”, nome de um dos capítulos do esquema preparado pela comissão.
Esses erros haviam sido condenados antes pelo papa Pio XII, que, na encíclica Humani generis, de 1950, chamou a atenção para os perigos da “nova moral”, termo com que designava especialmente a chamada “moral de situação”, a teoria de que a situação subjetiva é mais importante do que a definição de que algo seja objetivamente um pecado.
Os principais teólogos morais cujos avanços os críticos dos esquemas queriam ver representados no concílio eram o jesuíta Joseph Fuchs (1912-2005) e o redentorista Bernard Häring (1907-1998), ambos alemães, criadores de uma moral personalista e existencialista, menos baseada na lei divina ou natural e mais permeável ao pensamento moderno.
No prefácio do livro Il primo schema sulla famiglia e sul matrimonio del Concilio Vaticano II, que, em 2015 publicou o esquema sobre família que havia sido preparado para o concílio e rejeitado, o historiador italiano Roberto de Mattei explica as bases da nova doutrina moral que penetrou no Vaticano II: “A refundação da moralidade na pessoa mais do que na realidade objetiva da natureza significa atribuir um papel dominante à consciência humana. (…) A lei moral não é mais objetiva e racional, mas afetiva, pessoal, existencial. A consciência individual torna-se a lei soberana da moralidade”.
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O cardeal Fernandez publicou, em agosto de 2017, na Medellin, revista teológica do Conselho Episcopal da América Latina e Caribe (CELAM), um ensaio chamado “Capítulo VIII de Amoris Laetitia: o que Ficou Depois da Tempestade”.
Fernandez é apontado como o ghost writer por trás de Amoris laetitia, a exortação pós-sinodal publicada em 2016 depois do Sínodo dos Bispos sobre a Família. Ele próprio admite sua influência no documento.
Amoris laetitia também mostrou divisão entre diferentes episcopados. Especialmente sobre a interpretação de uma nota no capítulo VIII. A Conferência Episcopal Argentina entendeu que o documento autorizava a distribuição da comunhão a pessoas divorciadas e em um novo relacionamento. Os bispos da Polônia entenderam que a proibição de acesso aos sacramentos a pessoas vivendo em pecado continua válido.
“É lícito perguntar se atos de viver junto more uxorio [i.e. mantendo relações sexuais] deveria sempre cair, em sentido integral, no preceito negativo de ‘fornicação’. Digo ‘em sentido integral’ porque não se pode manter que esses atos em todo e qualquer caso sejam gravemente desonestos em um sentido subjetivo”, escreveu Fernandez.
O sentido subjetivo avançado por Fuchs e Häring como determinante, antes do concílio, achou em Fernández um defensor dentro da cúria.
As comissões nomeadas por são João XXIII para escrever os esquemas depois rejeitados foram coordenadas pelo cardeal Alfredo Ottaviani (1890-1979). O cardeal ocupava, então, o cargo equivalente ao de prefeito do Dicastério da Doutrina da Fé que Fernández ocupa hoje.
Os polos ocupados por Ottaviani no início dos anos 1960 e por Fernández agora se definiram pouco depois do concílio e podem ser identificados por duas revistas teológicas. A revista Concilium, fundada em 1965, no mesmo ano em que o concílio se encerrou, reunia Congar, Rahner, Schillebeeckx, Hans Urs von Balthasar e o jesuíta Henri de Lubac congregava o campo progressista. Nela, os responsáveis pelos substitutivos dos esquemas de Ottaviani tentavam dar o rumo da recepção do que havia sido determinado no concílio. Tem origem aí a ideia de que o Vaticano II importa mais pelo “espírito” ou “estilo” do que pelos documentos objetivamente votados e publicados pelos bispos.
Balthasar e De Lubac, que estavam longe de poder ser considerados conservadores, deixaram a revista e ajudaram a fundar, em 1972, a revista Communio, da qual fazia parte o então professor de teologia Joseph Ratzinger, até então muito próximo de Rahner. Em torno da Communio consolidou-se a ideia de que a interpretação correta do Concílio Vaticano II tinha que ser feita em continuidade com a tradição.
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São João Paulo II, que, depois dos apenas 34 dias de pontificado de João Paulo I, sucedeu são Paulo VI, fez sua a tarefa de implementar essa visão. Nos seus 28 anos como papa, João Paulo II estabeleceu o que Ratzinger, que serviu como prefeito da Congregação da Doutrina de Fé de 1982 até a morte de são João Paulo II, chamaria de “hermenêutica da continuidade”, a ideia de que todas as afirmações do Vaticano II tinham que ser interpretadas num sentido que se conformasse à tradição anterior.
O papa polonês, assistido por seu guardião da doutrina, corrigiu erros e disciplinou teólogos, entre os quais Hans Küng e Schillebeckx.
Em doutrina moral, a maior colaboração de são João Paulo II é a encíclica Veritatis splendor, de 1983.
“Hoje, porém, parece necessário refletir sobre o conjunto do ensinamento moral da Igreja, com a finalidade concreta de evocar algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no atual contexto, correm o risco de serem deformadas ou negadas”, escreveu no documento o papa polonês. “De fato, formou-se uma nova situação dentro da própria comunidade cristã, que experimentou a difusão de múltiplas dúvidas e objeções de ordem humana e psicológica, social e cultural, religiosa e até mesmo teológica, a propósito dos ensinamentos morais da Igreja. Não se trata já de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do patrimônio moral, baseada sobre determinadas concepções antropológicas e éticas. Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade. Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para «exortar as consciências» e «propor os valores», nos quais depois cada um inspirará, de forma autónoma, as decisões e as escolhas da vida”.
Em um artigo publicado em 2022 na revista America, dos jesuítas americanos, o padre Julio Luis Martínez Martínez escreveu: “É essencial desatar os nós que a Veritatis splendor colocou na moral católica”. Segundo ele, a encíclica de são João Paulo II introduziu o conceito de “mal intrínseco” ou inerente, algo que Martínez considera “um conceito filosófico controverso que levantou sérias dificuldades para a teologia moral”.
É com essa categoria que o Catecismo da Igreja Católica, publicado por ordem de são João Paulo II, define os “atos de homossexualidade”: “Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves a Tradição sempre declarou que ‘os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados’”, diz o catecismo no número 2.357.
Para Martínez, em Amoris laetitia o papa Francisco deu a teólogos e pastores, e a todos em geral, a tarefa de “tentar ver como aplicar o discernimento em todos os campos da vida moral” e, assim, ir além das categorias estabelecidas em Veritatis splendor.
Fiducia supplicans consagra como parte do magistério do papa essa mudança de enfoque. O documento não altera a definição de matrimônio, que continua sendo a união de um homem e uma mulher. Altera, porém, a base da doutrina moral explicada em Veritatis splendor, ao adotar uma concepção moral não mais baseada na verdade da doutrina sobre o pecado, mas sim na situação em que cada ser humano se encontra.
Essa concepção agora avança no trabalho do grupo de estudo de questões controversas estabelecido pelo papa à margem do Sínodo da Sinodalidade.
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